Linguagem Bíblica X Abordagem Terapêutica


      Alguns dias atrás, estava numa igreja e ouvi um cântico que em chamou a atenção. Foi a primeira vez que o ouvi, mas pelo entusiasmo com que foi cantado, notei que já era bem conhecido, principalmente pelos jovens. O que me chamou a atenção foi a linguagem, ou melhor, a letra. A rigor, não havia nada de mais - era uma letra bem simples, sem muita preocupação teológica ou métrica, mas trazia uma nova linguagem que vem crescendo muito no cenário evangélico. O cântico falava que Jesus veio para curar nossas feridas. Como disse, não havia nada de mais na letra, a não ser pelo fato de que ela simboliza uma mudança na linguagem evangélica que pode, sutilmente, representar perigo.
     A linguagem bíblica e teológica vem cedendo cada vez mais lugar para uma abordagem terapêutica e psicológica. Fala-se cada vez menos no pecado e cada vez mais em feridas; fala-se cada vez menos em redenção, ou justificação, e cada vez mais em cura; busca-se cada vez menos salvação e reconciliação e cada vez mais auto-realização, saúde e prosperidade.
A mudança é mesmo sutil. Não há nada de errado em falar de cura, feridas, saúde ou auto-realização; nas Escrituras Sagradas, encontramos tudo isso nas promessas e afirmações evangélicas. No entanto, ao substituir o pecado e a redenção pelas feridas e curas, corremos o risco de comprometer um marco bíblico e teológico básico e fundamental para a espiritualidade cristã - a natureza humana do pecado e a natureza divina da graça. O conceito bíblico do pecado não é o mesmo que o conceito popular, ou mesmo o terapêutico, da ferida. Da mesma forma, o conceito bíblico da justificação e da redenção não é o mesmo que o conceito de cura, pelo menos na forma como o temos afirmado. Um pode envolver o outro, mas não são a mesma coisa.
       Quando falamos de pecado, essencialmente estamos falando de tudo o que compromete ou impede nossa relação e comunhão com Deus. Não se trata apenas de uma ferida em nós que precisa ser tratada, mas de um obstáculo que tem de ser removido. Isso tem a ver com Deus, e não apenas com nosso bem-estar. Normalmente, quando falamos de ferida, falamos daquilo que nos causa algum desconforto, mas que não implica necessariamente num pecado. Uma ferida pode representar uma dor, um sofrimento, uma privação ou mesmo uma desilusão. Nem sempre estas sensações têm alguma relação com o pecado. Muitas vezes são até mesmo necessárias para o crescimento e fortalecimento da fé.







      Quando falamos de justificação ou de redenção, estamos falando essencialmente da ação de Deus em Cristo na cruz do Calvário. Ali, o Filho de Deus recebeu sobre si o fardo das nossas culpas e pecados, oferecendo-se como vítima em nosso lugar, pagando assim a impagável dívida do pecado de todos nós. Não se trata de uma cura, de uma intervenção divina em algum aspecto particular da existência humana, como a solução de um grave problema físico ou emocional. A redenção envolve muito mais do que o conforto proporcionado pela solução de um mal-estar. A redenção tem a ver com reconciliação, perdão e comunhão. Ela envolve, basicamente, nossa relação com Deus.
         A cura das feridas emocionais e espirituais, bem como a das dores físicas e relacionais, fazem parte do trabalho dos pastores e terapeutas. Sei também que não podemos minimizar nem simplificar os dramas causados pelo sofrimento e pela desilusão. Minha preocupação está mais voltada para esta linguagem nova que vem crescendo entre os cristãos e o risco de limitar e reduzir nossa compreensão da obra da salvação.

         Tal linguagem reflete o espírito moderno. O ser humano hoje não busca mais salvação, mas auto-realização; não se preocupa mais com o pecado, mas com saúde mental; não se interessa pela reconciliação, mas pela sua própria independência e autonomia; não deseja mais submeter-se a Deus e renunciar tudo para segui-lo, mas em ter um Deus que lhe dê tudo e não lhe exija nada. A preocupação moderna é romper com os sentimentos de culpa, sejam eles fruto do pecado ou da imaginação, para poder viver todas as vantagens conquistadas pela cultura do individualismo.
         A espiritualidade cristã não consiste num ajuste psicológico ou social que nos proporcione uma acomodação confortável no mundo que vivemos, mas em sermos transformados em Cristo. O apóstolo Paulo afirma que, tanto no seu trabalho pastoral como em sua própria jornada de fé, o grande objetivo era o de viver a vida da ressurreição - "Não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim" -, e conduzir seus filhos e filhas na fé a alcançarem a plenitude da vida em Cristo. Este caminho espiritual só é possível quando o pecado é tratado e redimido pelo poder da cruz do Calvário e nossa comunhão com Deus é restaurada pelo milagre da reconciliação e pelo poder da ressurreição.
        Certamente não precisamos abrir mão de expressões como "cura" e "feridas"; afinal, são termos que descrevem nossa debilidade e necessidade da graça de Deus. Contudo, não podemos nos esquecer de que ferida e pecado não são a mesma coisa, e que cura e redenção também não são sinônimos. Precisamos preservar a lembrança de que é Deus, e somente ele, que pode atender as necessidades mais íntimas e profundas de nossa alma. O sofrimento e as dores farão parte da vida; algumas feridas serão necessárias para nos preservar em Cristo e para que não esqueçamos de que é sua graça que nos sustenta e nos basta.
            Que o amor de Deus em Cristo continue realizando em nós sua obra de salvação e redenção, libertando-nos do pecado, curando as feridas e nos levando a provar seu poder transformador que fará de nós homens e mulheres livres em Cristo. 




(Fonte: Revista Eclésia, Pr. Ricardo Barbosa de Souza)


                                         
                                         




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1 comentários:

Fernanda disse...

oi aline!
Gostei di seu blog!!
bjus